Por Jânsen Leiros Jr
Revisado e ampliado em 08/04/2024
“5 Na época de Herodes, rei da Judéia, havia um certo sacerdote chamado Zacarias, que fazia parte do grupo sacerdotal de Abias. E Isabel, sua esposa, também era uma das descendentes de Arão. 6 Os dois andavam em justiça aos olhos de Deus e obedeciam de forma irrepreensível a todos os mandamentos e doutrinas do Senhor. 7 Contudo, eles não tinham filhos, porque Isabel era estéril, e ambos eram avançados em idade.
8 Em certa ocasião, quando seu grupo estava de serviço, Zacarias ministrava como sacerdote diante de Deus. 9 Ele foi escolhido por sorteio, de acordo com a tradição do sacerdócio, para ter acesso ao altar do Santo dos Santos e ali oferecer a queima do incenso. 10 E, chegando o momento da oferta do incenso, uma multidão de pessoas estava orando do lado de fora. 11 Foi então que um anjo do Senhor apareceu a Zacarias, à direita do altar do incenso. 12 Assim que Zacarias o viu, ficou perplexo e um grande temor o dominou completamente. 13 Entretanto, o anjo lhe assegurou: “Não tenhas medo, Zacarias; eis que a tua súplica foi ouvida. Isabel, tua esposa, te dará à luz um filho, e tu lhe porás o nome de João. 14 Ele te será motivo de grande felicidade e regozijo. E muitos se alegrarão com o seu nascimento. 15 Pois ele será grande aos olhos do Senhor, jamais beberá vinho nem qualquer outra bebida fermentada, e será pleno do Espírito Santo desde antes do seu nascimento. 16 E conduzirá muitos dos filhos de Israel à conversão ao Senhor, seu Deus. 17 Ele avançará na presença do Senhor, no mesmo espírito e poder de Elias, com o propósito de fazer voltar o coração dos pais a seus filhos e os desobedientes à sabedoria dos justos, deixando um povo preparado para o Senhor”.
18 Então, Zacarias indagou do anjo: “Como poderei certificar-me disso? Pois já sou idoso, e minha esposa igualmente de idade avançada”. 19 Ao que o anjo lhe replicou: “Sou Gabriel, aquele que está permanentemente na presença de Deus e fui encarregado de vir para falar e transmitir-te estas boas notícias. 20 Porém, eis que permanecerás em silêncio, pois não conseguirás falar até o dia em que venha a ocorrer tudo quanto te revelei, porquanto não acreditaste nas minhas palavras, as quais, no seu devido tempo, se cumprirão”.
21 Enquanto isso, o povo estava aguardando Zacarias e preocupava-se com o fato de que demorasse tanto no santuário do Senhor. 22 Mas, ao sair, nenhuma palavra conseguia pronunciar; as pessoas perceberam que ele tivera uma visão no santuário. Zacarias tentava comunicar-se através de sinais, permanecendo todavia mudo. 23 Ao completar seus dias dedicados ao serviço, ele regressou para casa.
24 E, passado esse tempo, Isabel, sua esposa, engravidou, mas durante cinco meses ocultou-se das pessoas não saindo de casa. 25 E ela dizia a si mesma: “Isto é dádiva do Senhor para mim! Eis que seus olhos me contemplaram, para retirar de sobre mim a grande humilhação que sentia diante de todos” “
Lucas 1:5-25 – KJA
Nos primeiros versículos do seu evangelho, Lucas prometeu fazer um relato detalhado sobre os acontecimentos da vida de Jesus. E ele logo se encarrega de cumprir tal promessa, pois com considerável detalhamento, já que sua narrativa se baseia em informações coletadas, ele declara fatos precedentes ao próprio nascimento do Senhor.
Numa primeira análise parece estranho que ele tenha se ocupado em incluir o nascimento de João Batista, como um fato relevante na trajetória de Jesus. Mais estranho ainda, é acrescentar um relato, ainda que breve, sobre o que acontecera antes mesmo de sua concepção. Porém, como afirmamos no exercício anterior, Lucas parece não relatar absolutamente nada por acaso. Muito pelo contrário. Por todo o texto sua narrativa aponta para temas claros, pretendendo assim, ensinar com fatos e diálogos sem necessariamente argumentar nada. Ele repete esse estilo no livro de Atos dos Apóstolos, onde a história contada se encarrega de expor seus princípios e percepções[1].
Note que ele começa estabelecendo um paralelo entre Herodes e Zacarias, ainda que pareça apenas situar um momento histórico. Herodes, rei da Judéia[2], Herodes o Grande como ficara conhecido, foi um rei que forjou seu trono à força. Ele não fora colocado no trono apenas, mas o conquistou à espada por volta de 37 a.C., após ter sido permitido-lhe, pelo próprio império romano, constituir um exército para seu projeto de poder. Já Zacarias, um sacerdote avançado em anos, sem filhos e sem muitas esperanças, cujos dias passava no ofício sacerdotal, era justo e temente a Deus, não obstante o infortúnio de não ter gerado descendência. De um lado poder e orgulho; do outro fraqueza e suplício. E Deus encaminha seu Reino a partir do desvalido e suplicante. Um sinal não compreendido pela elite religiosa da época.
Sim, porque o que Lucas elabora aqui é um excelente pano de fundo para uma questão espiritual. Ainda que forte e temido, o poder de Herodes é ilegítimo. Não tanto pela forma como o conquistou, mas porque o reino que Deus estava para estabelecer, não viria pela força da espada, mas da ação do seu Espírito que traria a existência o que não existia[3]. Trazendo vida de onde não se esperava, resgatando um povo cujas esperanças por liberdade já esmaeciam[4].
Ainda que motivo de súplicas, o desejo e a fé de Zacarias claudicavam. Tanto que, quando o anjo lhe apareceu anunciando que seria pai, ele não conseguiu crer no que lhe foi dito. Sou avançado em anos, disse ele ao anjo, demonstrando entender que suas circunstâncias desfavoráveis poderiam ser um impedimento para o cumprimento do que lhe fora anunciado. O anjo então o deixa mudo até o nascimento do filho, em oposição à sua desconfiança. Em silêncio teve que aguardar o cumprimento da promessa.
E aqui parece saltar-nos outro ensinamento. A vontade de Deus não se frustra apesar de nossa eventual desconfiança[5]. Mas a exemplo de Zacarias, ao duvidarmos do cuidado de Deus, perdemos a alegria de anunciar com os próprios lábios o favor de Deus em nossa vida, deixando passar a oportunidade de testemunhar por fé o seu resgate. Não é assim que acontece quando por fraqueza de fé, nos permitimos emudecer pela ansiedade e o medo da frustração?
Assim como Isabel, Israel vivia um momento de profunda infertilidade. A nação amargava mais um domínio, agora romano[6]. Havia grande desilusão. Há tempos não havia qualquer movimento que lhes apontasse para o surgimento de um messias que lhes restaurasse a nação. Viviam um momento de grande humilhação, assim como humilhante era para Isabel não conceber de Zacarias para lhe suscitar descendência. Não ser capaz de gerar vida era humilhante para ela. Não ser capaz de cuidar da própria vida nacional, também era humilhante para o povo judeu[7]. Por isso Isabel considera o aviso de que seria mãe uma dádiva, e como anúncio de sua redenção.
O interessante nesse caso, é que mais tarde o filho daquele que emudeceu por desacreditar na boa nova, se tornará exatamente a voz ouvida no deserto, anunciando a vinda do reino de Deus. O filho daquele que tivera a voz silenciada por descrer, cheio do Espírito Santo, anunciará por fé e ousadia, que o Senhor está para resgatar a humanidade de seus pecados[8]. Arrependei-vos!
Ora, na introdução de seu evangelho Lucas deixa claro que Deus realiza sua vontade apesar de toda e qualquer circunstância desfavorável. E mais. É exatamente num ambiente de total improbabilidade, onde tudo leva a crer no contrário, que o favor de Deus se manifesta em bondade e misericórdia. É exatamente quando somos fracos que nos tornamos fortes[9]. É esperando contra a esperança[10], que aguardamos a ação de Deus em nosso socorro e resgate.
Que nossa fé não se baseie em garantias oferecidas pela espada e o poder como o de Herodes, ou por qualquer outra forma de empoderamento humano, quer seja riqueza, posição social ou favores políticos. Antes, que sejamos confiantes no cuidado e na providência divina que nos redime sempre, ainda que da mais imprópria condição. Agindo Deus, quem impedirá?[11]
[1] Ao adotar a estratégia de narrar os eventos como forma de transmitir ensinamentos teológicos, Lucas segue uma abordagem narrativa que se alinha com o estilo literário dos evangelhos e com o contexto da época em que foram escritos. Aqui estão algumas razões pelas quais ele pode ter optado por essa abordagem:
1. Tradição Literária: Os evangelhos eram uma forma de literatura narrativa comum na cultura da época, destinada a transmitir tradições e ensinamentos de maneira acessível e memorável.
2. Auditoria Primária: Muitos dos primeiros leitores dos evangelhos provavelmente não eram alfabetizados, então a tradição oral desempenhava um papel importante na transmissão das histórias. Narrativas vívidas e memoráveis seriam mais eficazes para serem compartilhadas verbalmente.
3. Contexto Cultural: Na tradição judaica, a narrativa era frequentemente usada como meio de ensino. As parábolas de Jesus são exemplos claros desse método de ensino, que se baseia em histórias do cotidiano para transmitir verdades mais profundas.
4. Credibilidade e Testemunho: Ao narrar eventos como testemunha ocular ou baseando-se em testemunhas oculares, Lucas dá credibilidade aos relatos, especialmente quando se trata de eventos históricos cruciais, como a vida e os ensinamentos de Jesus e os primeiros dias da igreja primitiva.
5. Impacto Emocional: As histórias têm o poder de evocar emoções e criar conexões pessoais com os personagens e os ensinamentos apresentados. Isso pode levar a uma compreensão mais profunda e duradoura do significado por trás dos eventos narrados.
Portanto, Lucas pode ter escolhido essa abordagem narrativa para alcançar efetivamente seu público-alvo, transmitindo os ensinamentos teológicos de uma maneira que ressoasse com sua audiência e fosse facilmente compreendida e lembrada.
[2] Herodes, o Grande, foi um rei judeu que governou a região da Judeia sob o domínio romano durante o período do primeiro século a.C. Ele é conhecido por suas habilidades políticas, sua construção de grandes obras, como o Templo de Jerusalém, e também por seu governo autoritário e muitas vezes cruel. Herodes foi nomeado rei da Judeia pelos romanos em torno de 37 a.C. e reinou até sua morte em 4 a.C. Ele é mencionado em vários relatos do Novo Testamento, incluindo o nascimento de Jesus, onde sua busca pelo Messias recém-nascido levou ao massacre dos inocentes.
[3] Romanos 4:17; Nesse versículo, Paulo está falando sobre a fé de Abraão e como Deus, em quem Abraão creu, tem o poder de dar vida aos mortos e chamar à existência coisas que não existem. Isso ressalta o poder criativo de Deus e Sua capacidade de realizar o impossível.
[4] Isaías 9:2
[5] Jó 42:2
[6] Entre o domínio persa e o romano, houve o domínio grego sobre Israel. Este período é conhecido como o Período Helenístico, que começou com as conquistas de Alexandre, o Grande, por volta do século IV a.C. Após a morte de Alexandre, seu vasto império foi dividido entre seus generais, e a região de Israel acabou sob o controle dos governantes gregos ptolomaicos no sul e selêucidas no norte. Este período foi marcado por influências culturais gregas e pelo conflito entre as dinastias ptolomaica e selêucida pelo controle da região. O domínio selêucida foi particularmente opressivo e desencadeou uma revolta judaica liderada pelos Macabeus, que eventualmente levou à independência temporária de Israel. No entanto, a independência foi novamente perdida com a ascensão do Império Romano na região.
[7] Além das cobranças de impostos que causavam empobrecimento, o domínio romano causava um profundo sentimento de humilhação nos judeus por diversas combinações de fatores, como:
1. Perda da autonomia política e religiosa: Os romanos impuseram seu governo sobre os judeus, privando-os da autonomia política que desfrutavam anteriormente. Além disso, os líderes religiosos judeus tinham que cooperar com as autoridades romanas, o que muitas vezes gerava conflitos de interesses e interferência nas práticas religiosas.
2. Presença militar estrangeira: A presença de soldados romanos em solo judeu era constante e muitas vezes opressiva. Isso era uma lembrança diária da subjugação do povo judeu pelo Império Romano.
3. Restrições culturais e religiosas: Os romanos impuseram várias restrições às práticas culturais e religiosas dos judeus, o que os fazia sentir-se subjugados e desrespeitados em sua própria terra. Por exemplo, a exigência de prestar homenagem ao imperador romano como uma divindade era profundamente ofensiva para os judeus, que tinham uma forte tradição monoteísta.
4. Desprezo e discriminação: Os romanos muitas vezes tratavam os judeus com desprezo e discriminação, considerando-os inferiores. Isso se manifestava em vários aspectos da vida cotidiana, como acesso restrito a certas áreas da cidade, ocupações desfavoráveis e tratamento desigual perante a lei.
[8] João 1:29
[9] 2 Coríntios 12:9-10
[10] Romanos 4:18
[11] Isaías 43:13
Jânsen Leiros Jr.
Radialista, escritor e articulista Bicuda FM