Por Jânsen Leiros Jr
Revisado e ampliado em 01/01/2014
“1 Tendo em vista que muitos já se empenharam em elaborar uma narrativa histórica sobre os eventos que se cumpriram entre nós, 2 conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares dos fatos e servos dedicados à Palavra, 3 eu, pessoalmente, investiguei tudo em minúcias, a partir da origem e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo. 4 E isso, para que tenhas plena certeza das verdades que a ti foram ministradas. “
Lucas 1:1-4 – KJA
Muitos me perguntam por que resolvi iniciar os Exercícios Espirituais pelo Evangelho de Lucas, e não pelo Evangelho de Mateus, que é o primeiro dos evangelhos posicionados no Novo Testamento, ou mesmo por qualquer outro livro do compêndio bíblico. E sempre levo um tempo em silêncio, buscando uma resposta que se pretenda equilibrada entre as razões teológicas e as motivações meramente pessoais. Talvez um instinto agudo de querer parecer intelectual. Nunca consegui. Porque minha escolha deveu-se primordialmente a uma predileção pessoal e prazerosa. E essa é a mais pura e simples verdade.
Sempre achei a narrativa de Lucas mais interessante, mais humana e mais rica em detalhes. E talvez por isso a tenha lido mais vezes que as demais. E considerando que nada é tão improdutivo quanto realizar uma tarefa contínua, que não nos traga um mínimo de prazer e alegria, optei por iniciarmos os Exercícios exatamente em Lucas. Misto de interesse pessoal e prazer.
Sim. Além das considerações teológicas e históricas que veremos adiante, é importante destacar o prazer e a satisfação que podemos obter ao nos envolvermos com a leitura do Evangelho de Lucas. Segundo Spinoza[1], o prazer pode aumentar nossa capacidade de agir, o que se traduz em uma maior dedicação e empenho nos estudos espirituais. Dessa forma, a escolha do Evangelho de Lucas para nossos exercícios não se baseia apenas em critérios teológicos, mas também na experiência prazerosa e enriquecedora que ele proporciona.
Razões teológicas para iniciarmos por Lucas
É claro que, por força de ofício, ainda que de ofício os Exercícios nada tenham, há sim razões teológicas que nos orientam a iniciar nossas atividades por Lucas. E tentarei organizá-las a seguir, de modo que nos deixe mais confortáveis e interessados pela escolha.
Abordagem detalhada e rica em narrativa
O Evangelho de Lucas é conhecido por sua narrativa detalhada e rica em pormenores sobre a vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus. Isso proporciona uma visão mais ampla e profunda dos ensinamentos e feitos do Senhor, permitindo uma compreensão mais completa de sua mensagem e propósito.
Ênfase na compaixão e na inclusão
Lucas retrata Jesus como alguém compassivo e preocupado com os marginalizados, os pobres, os doentes e os pecadores. Ele destaca as parábolas de Jesus que enfatizam a misericórdia, o perdão e a inclusão, o que é relevante para quem busca compreender e praticar os ensinamentos de Cristo em sua vida cotidiana, demonstrando amor e cuidado pelo próximo. Ao apresentar Jesus como revelador de um Deus preocupado com os desfavorecidos das condições de uma vida digna, Lucas ressalta que a indignidade humana não se restringe à condição financeira, mas está principalmente relacionada ao afastamento de Deus.
Teologia da salvação universal
Lucas também enfatiza a mensagem de que a salvação é para todos, independentemente de sua origem étnica, social ou religiosa. Ele destaca o ministério de Jesus entre os gentios e apresenta várias histórias de não-judeus que encontram graça e salvação em Jesus. Isso é significativo quando exploramos a amplitude da graça e do amor de Deus pela humanidade.
Ênfase na ação do Espírito Santo
Lucas enfatiza a obra do Espírito Santo tanto no ministério de Jesus quanto na vida da igreja primitiva. Ele registra o papel do Espírito Santo no nascimento de Jesus, em seu ministério terreno e na capacitação dos discípulos para proclamar o evangelho após a ascensão de Jesus. Isso é relevante para uma compreensão mais profunda da atuação do Espírito Santo em nossas vidas e em nossos dias. Lucas apresenta Jesus como o Homem Perfeito, interessado em salvar o que se havia perdido. Todo o evangelho trata dessa humanidade plena e perfeita, sustentada pelo Espírito de Deus, que capacitou Jesus a realizar milagres e prodígios, e a confrontar os religiosos conformistas e aproveitadores de sua época.
Conexão com o livro de Atos dos Apóstolos
Lucas é também o autor do livro de Atos dos Apóstolos, formando uma obra coesa que narra a história da vida e do ministério de Jesus, seguida pela história da igreja do primeiro século e da propagação do evangelho após a ascensão de Jesus. Exercitar-se em Lucas pode preparar o caminho para uma compreensão mais profunda do livro de Atos e vice-versa, fortalecendo o entendimento da ação trina de Deus em Cristo, na Igreja e através dela. Essa característica é particularmente interessante, pois o evangelho de Lucas parece ser o primeiro volume de uma obra de dois volumes, sendo Atos dos Apóstolos o segundo livro de um mesmo trabalho. Tanto que Atos inicia com uma espécie de resumo do final do Evangelho de Lucas, como que introduzindo a história seguinte com as últimas cenas da narrativa anterior, estabelecendo um conjunto coerente que aponta ainda mais claramente as temáticas doutrinárias passadas por Lucas ao longo de seu evangelho.
Além das razões teológicas que justificam a escolha pelo Evangelho de Lucas como texto inicial para nossos exercícios bíblicos, seu estilo literário também é um fator importante a ser considerado. Lucas adota uma exposição temática dos fatos e diálogos narrados, concentrando ideias e princípios doutrinários, refletindo a teologia oral que já estava em construção à época em que escreveu seu evangelho. Vale ressaltar que Lucas foi companheiro de Paulo em suas viagens missionárias, o que possivelmente influenciou sua abordagem teológica. Assim como Marcos, que foi influenciado por Pedro, Lucas parece ter sido influenciado pela visão teológica de Paulo, tanto em seu evangelho quanto no livro de Atos dos Apóstolos.
Quando o Evangelho de Lucas foi escrito?
Embora a data precisa da redação do Evangelho de Lucas não seja conhecida, estima-se que tenha sido entre 60 e 63 d.C. Esta estimativa se baseia na ausência de referências à destruição do templo ou à morte de Paulo no texto, eventos que provavelmente teriam sido mencionados se já tivessem ocorrido. No entanto, mais do que a data exata da escrita, o que realmente importa para o nosso estudo é a riqueza teológica e narrativa presente no Evangelho de Lucas.
Que os nossos Exercícios Espirituais, a partir de hoje, nos proporcionem musculatura espiritual capaz de nos forjar maturidade na alma, para que prossigamos em crescer na graça e no conhecimento de Deus.
[1] Baruch Spinoza, filósofo holandês do século XVII, desenvolveu a ideia de que o prazer pode aumentar nossa capacidade de agir, o que ele chamou de “potência de agir” em sua obra “Ética”. Segundo Spinoza, quando experimentamos prazer em algo, isso nos leva a buscar mais dessa experiência, aumentando assim nossa capacidade de agir sobre o mundo. Em outras palavras, o prazer nos impulsiona a agir de maneira mais eficaz e determinada, contribuindo para nossa realização e felicidade.
Jânsen Leiros Jr.
Radialista, escritor e articulista Bicuda FM