Por Jânsen Leiros Jr.
Ele foi baleado pelas costas. Preso injustamente. Custodiado no hospital. E tudo por um celular que ele não roubou. Um artigo pra quem ainda tem vergonha na cara e para quem espera ainda poder recuperá-la.
Brasil, 2025. A vida de um jovem negro vale menos que um celular. E não é uma hipérbole retórica e nem mesmo uma pergunta. Antes fosse. É a anatomia nua e cruel de uma quase tragédia que vitimou Igor Melo de Carvalho, 32 anos, estudante, garçom, influenciador e, para azar da lógica institucional, brasileiro.
Na madrugada do dia 24 de fevereiro, Igor voltava do trabalho — veja bem, voltava do trabalho — na garupa de uma moto de aplicativo. Uma noite comum na vida de quem rala, como tantos outros milhões que garantem a sobrevivência na marra. Mas para Carlos Alberto de Jesus, policial militar aposentado (como se isso trouxesse alguma credencial para heroísmo improvisado), Igor não era um trabalhador. Era uma ameaça.
Por quê? Porque um celular havia sido roubado. E quem nunca achou razoável atirar nas costas de alguém com base em um palpite, que atire a primeira pedra. Ou melhor: que recarregue a pistola e mire nas costas do próximo trabalhador negro que passar pela rua.
A versão dos fatos é uma aula de distorção moral: o PM reformado confundiu Igor com o suposto ladrão que havia roubado o celular de sua esposa. Em vez de chamar a polícia — aquela com distintivo, viatura e dever de investigar — ele preferiu resolver no faroeste doméstico. Sacou a arma, atirou pelas costas, sem abordagem, sem voz de prisão, sem nem sequer saber quem era a pessoa. Acertou. Literalmente. E Igor perdeu um rim. Teve o estômago perfurado. O intestino afetado. Mas pelo menos o celular da dona ficou a salvo, né?
E o sistema fez o que sabe fazer: piorou. Igor, mesmo ferido, foi algemado no hospital. O mototaxista que só fazia seu trabalho, também. Porque, no Brasil, ser alvejado não basta. É preciso ainda carregar o estigma. O de suspeito, o de culpado até prova em contrário, o de “melhor verificar se não tem passagem”. As câmeras provaram o óbvio: estavam trabalhando. Mas, até lá, já tinham sido privados de liberdade, de dignidade e de presunção de inocência.
Não se trata apenas de abuso. Trata-se de uma estrutura que opera com a convicção de que existe um “perfil de culpado”. Um rosto. Uma cor. Uma origem. E que qualquer policial, armado de arrogância e munição, pode ser juiz, júri e executor — sem perguntar nomes.
O policial reformado está solto. Igor, até outro dia, estava sob custódia no leito hospitalar. É disso que estamos falando quando dizemos que há uma guerra racial e social em curso. Só que travestida de “segurança pública”.
E a cidadã, a esposa do policial, que apontou Igor como o suposto ladrão? Pediu desculpas? Retratou-se? Foi indiciada por falsa acusação? Ou seguiu a vida como quem perdeu um celular — e, no susto, ajudou a destruir a vida de um inocente? O silêncio dela é o retrato do pacto de indiferença social. Um pacto que naturaliza o “atire primeiro, descubra depois”.
Não podemos seguir normalizando isso, tirando o assunto da frente como quem descarta uma postagem qualquer no celular.
É preciso dizer: um celular vale menos que uma vida. Parece óbvio, mas não é. Porque, a cada dia, mais pessoas se acham no direito de avançar sobre a vida de outras — como o senhor aposentado — demonstrando exatamente o contrário.
Querem segurança? Comecem respeitando a Constituição. Querem justiça? Comecem responsabilizando quem atira antes de perguntar. Querem paz? Parem de criminalizar a existência de quem trabalha, de quem se locomove, de quem vive.
Igor agora se recupera. Ganhou uma oportunidade de trabalho em sua profissão. Recebeu apoio. Ganhou solidariedade — a mesma que o Estado lhe negou. Mas isso basta? Acabou tudo por aqui?
Não. Não enquanto continuar sendo possível atirar pelas costas num inocente — e ainda ser tratado como alguém que apenas “reagiu a um roubo”. Este caso é um divisor de águas. Ou a sociedade reage indignada — de verdade — ou o próximo Igor poderá não sairá do hospital. Irá direto para o cemitério. E aí talvez façam um minuto de silêncio. Só um. Antes de voltarem às suas vidas cotidianas, conferindo se o celular está no bolso.