Por Jânsen Leiros Jr.
Revisado e ampliado em 04/05/2024
“60 Muitos, pois, dos seus discípulos, ouvindo isto, disseram: Duro é este discurso; quem o pode ouvir? 61 Mas, sabendo Jesus em si mesmo que murmuravam disto os seus discípulos, disse-lhes: Isto vos escandaliza? 62 Que seria, pois, se vísseis subir o Filho do homem para onde primeiro estava? 63 O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida. 64 Mas há alguns de vós que não creem. Pois Jesus sabia, desde o princípio, quem eram os que não criam, e quem era o que o havia de entregar. 65 E continuou: Por isso vos disse que ninguém pode vir a mim, se pelo Pai lhe não for concedido.
66 Por causa disso muitos dos seus discípulos voltaram para trás e não andaram mais com ele. 67 Perguntou então Jesus aos doze: Quereis vós também retirar-vos? 68 Respondeu-lhe Simão Pedro: Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna.”
João 6:60-68 – JFA
Duro é esse discurso! Os que ouviram as declarações de Jesus em uma sinagoga em Cafarnaum, ficaram atônitos tanto com o conteúdo daquele discurso, quanto com a maneira clara e aberta com que Jesus afirmava coisas difíceis, não tanto de serem entendidas, mas principalmente de serem aceitas. Ele acabara de dizer que era o pão vivo que desceu dos céus, e que quem dele comesse teria a vida eterna. E o pão que eu darei é a minha carne[1]. Ele anunciava seu sacrifício.
O discurso proferido por Jesus foi tão pesado e duro, que muitos voltaram atrás e o abandonaram, não mais fazendo parte da multidão que o seguia. Isso me faz lembrar o ditado popular que minha avó sempre dizia, quando reclamávamos de alguma coisa que ela tivesse dito: Não está satisfeito? Porta da rua é serventia da casa. Posso imaginar o que os discípulos sentiram ao ouvirem quereis vós também retirar-vos? Mas Pedro, então, responde com um dos textos mais desconcertantes e devocionais dos evangelhos. Senhor, pra quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna.
O Sermão do Monte proferido por Jesus apresenta características semelhantes. É um discurso de extremos, em que a lei de Moisés e seus desdobramentos são confrontados com exigências ainda severas e impensáveis; ouvistes o que foi dito… eu porém vos digo. Havia nessa fórmula uma aparência de antagonismo entre o que a lei determinava e o que Jesus discursava. Porém, Ele não só não a descumpre como a aprofunda.
“17 Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir. 18 Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. 19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus.20 Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.”
Mateus 5:17-20 – JFA
Os chamados mestres da lei, que impunham aos seus seguidores pesados jugos e fardos de múltiplas ordenanças, haviam desdobrado a lei de Moisés em 613 regras sustentadas por 1.521 emendas[2]. Mas o que poderia parecer um aumento significativo de severidade em relação à lei primordial, era na verdade um intrincado novelo de pequenas burlas e concessões, que na prática facilitavam seu cumprimento, atendendo a dureza do coração do homem. Tais regras encorajavam o comportamento hipócrita de tais mestres, que se orgulhavam de cumprir à risca os mandamentos da lei, na verdade camuflados nas condições convenientes de suas aquiescências.
O que Jesus faz no Sermão do Monte, portanto, é aprofundar o sentido de justiça. Ele retira o foco do cumprimento da literalidade da lei e de sua compreensão legal, e o coloca na intenção do coração do homem. Ele flagra e expõe as atitudes aparentes, denunciando o comportamento tendencioso e hipócrita de fazer parecer, aquilo que na prática e em verdade não é ou nunca foi.
Diante do rigor proposto à lei, uma vez que Jesus eleva muito o sentido de justiça, quem poderia se julgar capaz de cumpri-la? Pois que lei é essa em que se deve orar pelo soldado romano que oprime os judeus, que abusa de seu poder e lhe toma os pertences? Sede perfeitos, assim como perfeito é o Pai que está nos céus![3] Ou ainda, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me?[4] A conclusão dos seus ouvintes não poderia ser outra. Duro é esse discurso.
Quando Jesus aprofunda a lei, demonstrando que aquilo que importa para Deus não é a observância externa, mas antes a intenção do coração, ele torna o cumprimento dessa mesma lei ainda mais difícil, e por assim dizer impossível. Arranca o seu olho[5], oferece a outra face[6], entrega também a capa[7]. Qual o objetivo de demonstrar ser impossível cumprir a lei? Não vejo outra possibilidade, senão a de demonstrar que somente pela graça de Deus a humanidade pode ser aceita no Reino dos céus. Sim, porque jamais haverá qualquer ser humano capaz de dizer a Deus: Eu cumpri tudo o que deveria ser cumprido. Você tem a obrigação de me aceitar em seu Reino. A isso Jesus respondeu: Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer[8].
Assim, o Reino de Deus é constituído por pessoas salvas pela graça. A quem Deus amou primeiro. Ninguém tem nada do que se jactar, pois não há quem possa se declarar merecedor das recompensas que o Pai venha a lhe conceder. Pela graça sois salvos[9]. E ainda, a chuva cai sobre justos e injustos[10].
Portanto não teremos pela frente, ao estudarmos o Sermão do Monte, qualquer texto simples e de fácil compreensão. Menos ainda de direta aceitação ou imediata aplicação. Muito pelo contrário. Encontraremos pedras nesse sermão e tenho a impressão de que algumas poderão doer um pouco ao nos atingir em cheio. Algumas exigirão de nós redobrada atenção e cuidado. Outras tantas poderão nos atingir apenas de raspão. Mas de uma coisa tenho total convicção. Sairemos todos muito mais amadurecidos após escutarmos esse sermão. Porque a cada frase nos sentiremos completamente revirados pelo avesso, ainda que sensivelmente bem-aventurados.
[1] João 6:48-51
[2] Os números “613” e “1521” referem-se às interpretações detalhadas e expansivas da Lei de Moisés pelos mestres da lei e fariseus na época de Jesus. Esses números não são mencionados explicitamente na Bíblia, mas são derivados de tradições e interpretações rabínicas.
A obra onde esses números são frequentemente mencionados é o “Talmude”, uma coleção central de ensinamentos e comentários judaicos que inclui o “Mishná” e a “Guemará”. No “Talmude”, esses números são citados em discussões sobre a interpretação e aplicação prática da Lei de Moisés.
Embora esses números específicos possam não ser mencionados em todas as edições do “Talmude”, a discussão sobre a extensão detalhada das leis e tradições é um tema recorrente na literatura rabínica. O “Talmude” é uma obra vasta e complexa que aborda uma variedade de assuntos legais, éticos e religiosos, e os números podem ser encontrados em contextos que discutem as nuances da lei judaica e sua aplicação na vida cotidiana.
[3] Mateus 5:48
[4] Mateus 19:21
[5] Mateus 5:29
[6] Mateus 5:39
[7] Mateus 5:40
[8] João 60:44
[9] Efésios 2:8-9
[10] Mateus 5:45