Por Jânsen Leiros Jr.
“…o livro de Jó não se limita a ser um tratado sobre o sofrimento humano, mas abrange uma ampla gama de temas teológicos e filosóficos… o sofrimento é apenas um aspecto da obra e há uma complexidade maior na mensagem do livro… o livro de Jó levanta questões sobre a justiça divina, a natureza de Deus, e a resposta humana à adversidade… o sofrimento de Jó serve como cenário para explorar essas questões mais profundas, mas não é o foco da narrativa.”
Artigo: “The Theology of the Book of Job” (A Teologia do Livro de Jó)
Fonte: The Evangelical Quarterly, Volume 10, Issue 4, outubro de 1938, páginas 302-315.
Norman H. Snaith
Tradução do autor
Pode parecer até aqui que a análise que estamos iniciando em nossas reflexões no livro de Jó despreze, como sofrimento, os fatos e circunstâncias cotidianas da vida comum, assim como todos os transtornos, e consequências desagradáveis que tais fatos provocam em cada ser humano. Mas não é isso. Muito pelo contrário. É mais do que evidente que aquilo que parece um simples infortúnio para mim pode ser verdadeira causa de aflição severa para outros, dependendo apenas do significado que tal idêntica condição tenha para mim, comparando com o que provoca nos outros.
O desemprego, por exemplo, é sem dúvida um revés bastante desconcertante, para qualquer pessoa que não o pretenda, sendo capaz de causar consequências devastadoras no indivíduo e na sociedade. Para um jovem de vinte e poucos anos, porém, terá um significado bem menos preocupante, considerando apenas o aspecto etário, do que para uma pessoa de mais de cinco décadas de vida, a poucos anos da aposentadoria. Para este, o desemprego inesperado pode mesmo trazer consequências devastadoras, causando, na ponta, severa aflição. Se este mesmo jovem desempregado, porém, for arrimo de família, a falta de um salário poderá causar muita angústia e medo, diante da insegurança e da incerteza que o afligirá.
Diante disso, então, se condições semelhantes podem provocar diferentes graus de desconforto e angústia, variando mesmo entre simples infortúnio e devastadora tragédia, o que exatamente, em meio ao caos, estabelece o que fará de qualquer acontecimento ou condição fator incontestável de severa aflição? Talvez a diferença não esteja na natureza e nem mesmo no cenário em que o sofrimento ocorra, independentemente de suas variáveis, mas sim no grau de desesperança por presumida inexistência de solução, ou mesmo de reversão das consequências advindas de uma determinada realidade.
Ou seja, o que pretendemos destacar e isolar, para melhor análise e compreensão, é que o sofrimento não está necessariamente ligado à natureza objetiva do evento em si, mas sim à interpretação subjetiva que cada indivíduo faz dele. Em outras palavras, o que determina se uma situação é fonte de aflição severa ou não é a percepção de esperança ou desesperança diante das mais variadas circunstâncias.
O Sofrimento como tema bíblico
O tema do sofrimento é sem dúvida uma das questões mais recorrentes e relevantes em toda a Bíblia, merecendo atenção especial de qualquer estudioso das Escrituras. Desde os relatos mais antigos até as cartas apostólicas do Novo Testamento, o sofrimento é uma realidade enfrentada pela maioria dos personagens bíblicos e abordada de diversas maneiras. Mas há, claro, casos bem marcantes, que confirmam a relevância do tema.
No Antigo Testamento, além do livro de Jó, claro, um exemplo notável é o do povo de Israel durante seu período de escravidão no Egito, conforme registrado no livro de Êxodo. Os israelitas enfrentaram condições extremamente difíceis devido à opressão dos egípcios, sofrendo sob o jugo da escravidão. Sua história, no entanto, é marcada pela libertação miraculosa por parte de Deus, que os conduziu através do deserto em direção à Terra Prometida.
Ainda nos Salmos, encontramos expressões profundas de sofrimento e angústia, mas também de esperança e confiança em Deus. O Salmo 22, por exemplo, descreve vividamente o sofrimento do salmista, que clama a Deus em meio à dor: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que te alongas do meu auxílio e das palavras do meu bramido?” (Salmo 22:1, ARC). No entanto, o salmo também expressa confiança na fidelidade de Deus, que eventualmente trará livramento ao aflito.
Já no Novo Testamento, o próprio Jesus é apresentado como alguém que experimentou sofrimento de forma intensa. Desde seu nascimento em condições adversas, até sua crucificação, Jesus viveu uma vida marcada pelo desconforto, pela dor e pelo sacrifício. No Jardim do Getsêmani, momentos antes de sua prisão, ele expressou angústia profunda, orando ao Pai: “Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres” (Mateus 26:39, ARC).
Além disso, as epístolas do Novo Testamento, escritas pelos apóstolos, abordam o tema do sofrimento de várias maneiras. O apóstolo Paulo, por exemplo, escreveu sobre suas próprias experiências de aflição e perseguição, destacando a importância de suportar o sofrimento com fé e esperança. Em sua segunda carta aos Coríntios, ele escreve: “Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente” (2 Coríntios 4:17, ARC).
O que podemos, com razoável segurança, inferir desse resumido painel que apresenta o sofrimento como tema presente em toda a extensão do texto bíblico é que, de maneira abrangente e profunda, a reflexão sobre a condição humana do sofrimento sempre esteve profundamente ligada à esperança e à confiança em Deus, como sua opositora e cura.
Tudo isso considerado, quando falamos de sofrimento no livro de Jó, estamos falando de tragédias e circunstâncias em série, que cercaram o personagem central da história por todos os lados, atirando-o numa condição de total desesperança diante da realidade que lhe tomou de assalto. Luto pelos filhos, perdas patrimoniais e enfim a própria saúde, se somam em um ambiente trágico paralisante, diante do qual, de pronto, dificilmente alguém consegue posicionar-se equilibradamente, sem sentir-se totalmente desamparado e sem saída. A morte se apresenta como sombra. Iminente possibilidade. O desespero tolda todo e qualquer pensamento. Um estado inevitável de aflição severa toma conta da alma.
Assim, o que podemos concluir até aqui sobre a primeira questão quanto a ser o livro de Jó, efetivamente, uma narrativa que se ocupe em debater o sofrimento humano, é que o sofrimento ao qual o personagem é exposto é efetivamente uma aflição severa, e não apenas condição incômoda da vida, cuja solução seria possível, em maior ou menor grau, e cuja reversão se fizesse plausível, pela ação direta ou indireta do próprio Jó. Antes disso, Jó estava totalmente impossibilitado de tudo, desde sua integridade física, até acesso ao que lhe pudesse produzir qualquer conforto. Sem dinheiro, sem família e sem saúde. Quase nada lhe restava, senão apenas amaldiçoar a Deus, e morrer.
A natureza do sofrimento de Jó e sua singularidade
Um outro aspecto que precisamos apurar sobre a questão do sofrimento que se abate sobre Jó, é a natureza do que lhe aflige. Ou seja, seria o seu sofrimento causado por infortúnios casuais, coincidentemente sequenciados e devastadores em série, ou tal aflição vem a reboque do acumulo de tragédias a ele impostas, que buscavam provocar-lhe exatamente a condição aflitiva em que acaba por se encontrar? Ou ainda, e mais especificamente falando, o sofrimento de Jó é consequência de seus próprios atos ou decisões equivocadas, ou surge de fatores completamente imponderáveis, dos quais Jó não teria qualquer controle ou possibilidade de evitar? Seus amigos vão achar exatamente que a aflição de Jó tem causa em alguma atitude sua. Algum pecado seu, quer sabido ou oculto até a ele mesmo. Nós, porém, sabemos que não.
O que me parece relevante apontar nesse segundo aspecto sobre o sofrimento, portanto, é que ao longo de nossas existências, há desconfortos imponderáveis e outros pelos quais poderíamos não estar passando, caso nossas condutas ou escolhas tivessem apontado para outra direção. O que significa dizer, que há sofrimentos em que apenas estamos colhendo o que plantamos, pagando pelo que causamos, ou qualquer outra condição em que o efeito vivido vem em confronto àquilo que nós mesmos provocamos. O caso de Jó, contudo, não parece ser este.
Ora, se a diversidade de causas e circunstâncias do sofrimento não invalida o grau da dor experimentada por cada indivíduo, sendo o sofrimento uma experiência subjetiva e real independentemente de suas origens, uma vez que tal diversidade não é apresentada na narrativa de modo a tornar o conteúdo abrangente e exaustivo, mesmo que tipificado fosse, afirmar que o tema central do livro é o sofrimento humano puro e simples, é simplificar a reflexão, e encurtar a profundidade da discussão que a história de Jó nos oferece. Desprezar outros fatores até mais profundamente abordados do que o próprio sofrimento, nos impede de perceber as questões éticas, teológicas e existenciais exploradas na narrativa, que ampliam sua relevância e significado para além do simples registro do sofrimento humano. Precisamos de uma compreensão mais profunda e contextualizada do livro e de sua mensagem.
Talvez não seja sem razão que a narrativa do livro comece exatamente qualificando Jó, e não com elogios feitos por amigos, empregados ou familiares. Quem o qualifica como homem íntegro, temente a Deus e que se desvia do mal é o próprio Deus. E o faz duas vezes, afirmando e reafirmando na história, que Jó não tinha absolutamente nada em sua reputação, que pudesse ser considerado mácula causadora do que viria a sofrer adiante. Ou seja, o sofrimento de Jó não foi consequente, mas proposital. Tão pouco fora casual, no sentido de natureza acidental. Não veio do acaso. Jó é um sofredor totalmente inocente, e cuja condição de aflição servirá apenas como pano de fundo para um propósito que vai além de si mesmo. Não é, por assim dizer, um instrumento que potencialize qualquer mudança nele, ainda que ambiente a completa transformação de sua relação com Deus.
Assim, ao refletirmos sobre a história de Jó, somos convidados a considerar não apenas o papel do sofrimento em nossas vidas individuais, mas também a dimensão espiritual e transcendental que pode estar além de nossa percepção imediata. Tendo Jó como exemplo, somos desafiados a confrontar conclusões superficiais ou de lugar comum. E muito embora o sofrimento seja uma realidade inevitável na vida humana, não podemos pensar nele como meio determinante de crescimento pessoal, sob pena de confinarmos o conteúdo do livro, a um determinismo implacável e meramente mecanicista.
Jânsen Leiros Jr.
Radialista, escritor e articulista Bicuda FM